ARTIGOS
Crianças não são racistas, mas ensinamos elas a serem
ESTADÃO | Mônica Nobrega
Crianças não são racistas, mas o mundo todo dia as ensina a serem.
Semana passada eu estava na Holanda, a trabalho. Segundo dado de 2014, a Holanda tem 78,6% de sua população formada por pessoas brancas. Lá, meu cabelo cacheado e volumoso foi em alguns momentos uma espécie de atração – às vezes admirado, outras nem tanto.
Um desses momentos aconteceu num elevador de hotel. Quando entrei, estavam lá duas mulheres e um menino de seus 5 anos. Todos loiros. Uma das mulheres colocou a mão num dos meus cachos (sem pedir autorização, um clássico) e comentou com voz alterada: “Seu cabelo!”. Cara alegre, então acho que quis elogiar. Sorri para a criança e sua mãe, querendo mostrar que não há nada demais nas pessoas que têm “meu cabelo”.
Crianças não são racistas. Mas, ao me apontar como exótica por ser diferente dela, aquela mulher indiretamente ensinou ao menininho que há um padrão, eu estou fora dele e posso ser invadida e publicamente marcada por isso.
Em Milão, sentei numa doceria para o café da manhã. Entrou uma família de indianos: pai, mãe, avó, menino pequeno e bebê. Não falavam italiano, falavam mal o inglês. O atendente se irritou em poucos segundos. Praticamente os enxotou dizendo que não conseguiria atendê-los.
Havia outras crianças na doceria. Crianças não são racistas mas, ao verem tal cena lamentável (contra a qual ninguém fez nada, nem eu), desaprendem o valor do respeito e da tolerância.
Arte
Johannesburgo, África do Sul. Uma galeria de arte expunha os trabalhos de jovens negros alunos de um projeto que ensina fotografia a ex-moradores de rua. Uma das alunas explicava as fotos; enquanto isso, um pai de duas pré-adolescentes fazia perguntas deslocadas – embora cheias de interesse – sobre os cabelos trançados dela.
Pré-adolescentes talvez ainda não tenham aprendido a serem racistas, mas aquele pai estava consolidando o racismo em suas filhas ao deixar claro que pouco importava o que dizia a jovem aluna de fotografia. Importante mesmo era seu penteado “diferente” (para ele, branco).
Numa praia de ilha em Paraty, havia um casal belga entre os poucos turistas. O filho deles tinha a idade do meu; mesmo balbuciando idiomas distintos, logo se entenderam. Meu menino escuro e cacheado e o pequeno belga de cabelos quase brancos brincaram longamente e almoçaram juntos arroz, feijão e salada comprados na única barraca da praia. Mesmo assim, uma pessoa que passava fez questão de notar em voz alta o quanto era “lindo crianças de cores tão diferentes brincando juntas”.
Notável
Dessa forma, um completo estranho ensinou a duas crianças muito pequenas que o fato de suas peles terem cores diferentes era mais notável que a tarde divertida que compartilhavam.
Não estou dizendo que pessoas brancas são más ou que planejaram ser racistas nas situações que descrevi. Algumas, inclusive, tiveram a genuína intenção de elogiar. Mas, quando a primeira coisa que adultos destacam é a diferença no outro – e não aquilo que o outro diz, faz ou compartilha – estão mostrando às crianças que são elas, as diferenças, que mais importam.
Quero aproveitar o clima do mês da Consciência Negra para sugerir que, ao levar seus filhos para viajar, você os ensine a perceberem primeiro aquilo que nos faz, a todos, humanamente semelhantes.
Se reler este texto, inclusive, você vai notar como são chatas e cansativas as descrições das características físicas das pessoas. Qual a importância delas, afinal?
Desafio
Natural do Congo, o médico Seyolo Zantoko muda-se com a mulher e os dois filhos para uma comunidade rural na França, para trabalhar no posto de saúde local.
Este é o ponto de partida do filme Bem-vindo a Marly Gomont (2016). O longa francês é uma comédia. Mas tem uma cena precisa, chocante na medida: as brancas crianças francesas, sob influência das atitudes de seus pais e avós, discriminam os filhos negros do médico em seu primeiro dia de aula na escola da vila.