A emocionante psicografia do filho de Nair Belo pela mediunidade de Chico Xavier

INSTITUTO CHICO XAVIER

Querida mamãe, meu pai, este é o momento do Mané criança e preciso pedir a bênção. Não sei muito bem como escrever aqui. A sala iluminada, muita gente, e o menino aqui, lembrando as provas do colégio. Se a memória não estiver funcionando corretamente, já sei que não consigo o que desejo. Acontece, porém, que tenho bons amigos, auxiliando-me a grafar esta carta.

Creiam vocês, a rapidez da escrita, o tipo da letra, em grande parte pertencem a eles, à Vovó Maria e ao nosso amigo Dr. Trajano, mas o que escrevo, o que passo nas linhas caprichosas do lápis não é cola nem sopro de outras inteligências.

Mãezinha, é hora de chorar com vocês e afirmar que os sentimentos são meus mesmos, são de seu Manoel caladão, enfeitado de tantas idéias e de tantas teimosias que fui até onde a rebeldia e a falta de comunicação me levaram. Já sabemos tudo. Papai foi mais forte, naquele dezembro que estourava com a nossa certeza de uns dias de recreio e bons papos com os nossos de Limeira, quando você, mamãe, fazia tantos planos diante de nós, para ver se descansava de suas lutas no trabalho, eis que o Mané não achou a pedra no caminho, mas encontrou um tronco forte que me pôs a cabeça incapaz de pensar.

Mãezinha e meu pai, eu fiz tudo para levantar o corpo, mas eu creio que o choque me alterou a circulação. Não estamos na hora de saber se rebentei alguma artéria importante ou se abri torneiras de sangue na cabeça intracraneo (vamos criar uma palavra que me ajude a recordar), mas o que é certo é que sou trazido até aqui para consolar-nos, uns aos outros. Erguer-me não pude, falar muito menos, tive apenas a sensação de que caía num sono contra minha própria vontade. E creiam vocês dois que pensei em ambos do mesmo modo que pensei em Deus naqueles momentos em que me apagava devagar. Tanto desejo de sair, buscar algum telefone e contar que fôra vítima de um acidente.

Mamãe, isso tudo eu pensei com tantas saudades de você. Naquela hora precisava de sua alegria e de sua palavra para suportar o tranco, mas sem saber rezar, em silêncio pedi a Deus nos aben­çoasse e não deixasse você e meu pai acreditarem em suicídio. As vezes, o Mané casmurro que eu era, falava em mundo difícil de agüentar e fazia alguma referência que pudesse dar a idéia de que, algum dia, ainda forçaria o portão de saída da Terra. Mas estejam convencidos de que o carro deslizou sem que eu pudesse controlá-lo. A visão não estava claramente aberta para mim, porque sentia em torno uma névoa grossa e a manobra infeliz veio fatal e com tamanha violência que a tese de suicídio não devia vir à baila.

Isso tudo, eu compreendi muito depois, porque naquele instante eu estava pensando em Natal e em nossa viagem a Limeira. Não sei se recordam que eu demons­trava uma certa indecisão entre acompanhar a família ou ficar em nossa casa. Mas isso tudo era só de menti­rinha porque, no fundo, eu queria seguir com todos. Mas eu, que às vezes, falava na morte, não sabia que ela me espreitava assim tão perto. Caí sem querer num sono violento no qual me pareceu estar num poço muito profundo, à espera de que me libertassem, conquanto não me fosse possível gritar por socorro. Por fim, sonhei, como num pesadelo que me carregavam para o hospital e escutei, mamãe, o seu choro abafado. As vozes baixas no sonho eram ainda mais baixas. Senti o cheiro de remédios e escutei o ruído de instrumentos como se penetrando em meu cérebro. O sonho era demorado, um sonho em forma de pesadelo, daqueles que a gente quer acordar sem poder, mas depois, veio um sono silencioso, como se tudo houvesse acabado, o mundo e eu.

Despertei não sei quando até hoje, e me senti à vontade, pedindo pela presença de meu pai para con­versar. Queria preparar com ele um modo de atenuar os sustos em casa e sempre com a idéia fixa na viagem do Natal. Foi quando minha avó Maria e outra senhora, a quem ela deu o nome de D. Maria Angélica de Vas­concellos me animaram para o conhecimento da verdade. A realidade é que eu estava completamente boiando nos casos. Não conhecia ninguém. Elas me apresentaram a dois senhores, que se identificaram como sendo o Dr. Trajano de Barros e o meu bisavô Souza e depois trou­xeram um sacerdote amigo e paternal que me disse conhecer-nos a todos. Tive a idéia de que o grupo se compadecia de minha ignorância mas o sacerdote encon­trou um caminho para abordar-me:

Pois você, Manoel, nunca ouviu em casa de seu avô a história de Frei João, aquele que pretendia curar febres com o suco de limas?

Ele perguntou com um sorriso tão luminoso e tão amigo que meu espanto diminuiu. Se eu estava vendo o frei João de Limeira eu estava entre os mortos ou entre os vivos de outra espécie e perguntando à minha avó Maria sobre isso, com o olhar ela me respondeu: – É verdade, meu filho, a casa de Irineu e de Nair agora é a nossa aqui para você. A morte não existe. Você apenas voltou aos seus. Tinhamos muitas saudades de você tam­bém. Aquilo me cortou o coração. E mamãe? Ela me in­formou que você e meu pai com os irmãos estavam com a bênção de Deus e que eu não devia rebelar-me contra o acontecido, mamãe. Não adiantaria qualquer resposta agressiva de minha parte… Então chorei como se “nunca mais” fôsse a situação em que a morte nos colocava di­ante daqueles que mais amamos. As emoções me agrava­ram a condição de doente e debatí-me numa febre que perdurou muito tempo.

Febre em que a via alucinada de dor, com meu pai procurando reconfortá-la. Quem disse que a morte liquida tudo estava muito enganado. Nas alucinações ouvia os seus pensamentos: “o que terá você feito, filho? Manoel, conte para sua mãe a verdade! Fale se você não mais nos quis!”. E eu respondia expli­cando o acidente, mesmo cansado e abatido como estava via meu pai sofrer calado para não aumentar as tristeza em casa e ouvia os irmãos falando em festas de Natal e Ano Novo, com algumas pontas de ironia de quem não compreende a presença do sofrimento, nas horas em que mais pensamos em Deus.

Mas, melhorando, comecei a temer por você, Mãezinha. Sua alegria parecia morta, seu coração dava a idéia de uma noite fria e sem estrelas. Você pensava se valeria a pena ficar na terra sem seu Mané casmurro. E tanto amor extravasava de seu coração para o meu, embora as distâncias de Espaço que não existem para os que se amam que, o teimoso de sempre, inclinei-me para a idéia de Deus e comecei a pedir por sua alegria e por sua vida. Papai e os nossos não poderiam ficar sem você e você não poderia vir antes do momento marcado. Pedi e pedi tanto que, um amigo apareceu com a vovó Maria e se identificou por Oduvaldo. Era o nosso amigo Oduvaldo Viana que me disse: – Você pode estar sossegado, Nair é mais corajosa do que você pensa e nós vamos organizar a peça em que sempre desejei ver sua mãe mostrar o talento que lhe conheço.

Depois de algum tempo, passei a vê-la no espelho de minha visão ocupada com o teatro e Oduvaldo com muitos amigos auxiliando-a. Mãezinha, eu sabia que isso ia dar certo, porque você foi sempre a rainha do trabalho. Ser­viço nunca lhe deu medo e foi com muitas lágrimas de alegria que fui levado para abraçá-la em sua volta ao palco de paz e alegria. O trabalho diminuiu nossas penas, papai ficou mais calmo ao vê-la mais serena e tôda a familia reanimou-se.

Perdoem-me se me estendi tanto. Não tenho pretensões de sintetizar. Isso é para os escritores que burilam as palavras e as frases, como os ourives fazem com as pedras preciosas. Aqui, mamãe, é só o coração do filho para tranqüilizá­–los. Estou bem. Estou em outras faixas e agora menos introvertido. Estou aprendendo aquela ciência em que você e meu pai sempre me quiseram bem formado, a ciência do diálogo. Estou aprendendo a sair de mim mes­mo e a ouvir para responder certo. Penso que consegui o que desejava: sossegar meu pai e minha mãe, acerca do acidente de que fui vítima. Papai está com excelentes es­tudos sobre a vida da alma. Quando você, mamãe, puder fazer o mesmo, isso será muito bom. Eu teria chegado aqui mais escovado se tivesse alguma preparação sobre os meus novos assuntos.

Abraços na turma toda, começando por Aparecida e continuando nos irmãos. Diga mamãe, a eles todos que estou melhor e com boas notas de renovação. Desejo a todos uma vida longa e muito feliz. Obrigado, mamãe, por seus gestos de caridade pensando em mim. Esse agradecimento é extensivo ao meu papai. Minhas sauda­ções aos seus e nossos companheiros de trabalho, espe­cialmente aos que vieram com vocês até aqui. Um abra­ção para todos de São Paulo a Limeira e vice-versa. Agora, peço-lhes que me abençoem com alegria. Mamãe, eu creio que principalmente você e eu já nos cansamos de chorar. Coloque a sua alegria em nossa vida como sempre. Seja sempre a nossa Nair Bella, que nós seguía­mos atentos em tudo de bom e belo que a sua arte produz.

Meu abraço aos dois, a você e a meu pai, com um beijo do filho cada vez mais reconhecido e sempre mais filho de vocês dois pelo coração e com todo o coração do Mané. Manoel Francisco Neto.

ESCLARECIMENTOS IMPORTANTES

Manoel Francisco Neto, filho de Nair Bello Souza Francisco e Irineu Souza Francisco, nasceu em Santos a 11 de outubro de 1955 e desencarnou em 14 de dezembro de 1975, com 20 anos de idade, vitimado num acidente de automóvel que ele mesmo dirigia, de encontro a uma árvore na rua Eng°. Edgard Egídio de Souza, próximo à sua residência, no bairro do Pacaembú, São Paulo. O acidente ocorreu na madrugada do dia 9 de dezembro e Manoel ficou em coma, com febres altas no Hospital Matarazzo, terapia intensiva, até o desfecho final.

As pessoas por ele citadas na mensagem recebida por Francisco Cândido Xavier, na sala principal do Grupo Espírita da Prece, em Uberaba, MG, diante de seus pais e de dezenas de outras pessoas, foram identificadas por seus familiares, algumas até com um pouco esforço de memória:

Maria da Piedade Francisco é a vovó Maria, sua bisavó paterna, nascida em Portugal e desencarnada em Limeira, em dezembro de 1955, um mês após Manoel haver nascido.

Dr. Trajano de Barros Camargo cidadão benemérito da cidade de Limeira, onde fundou a primeira indústria lá existente. A rua principal e o Colégio Industrial de Limeira, levam o seu nome.

D. Maria Angélica de Vasconcellos segundo informações obtidas junto à família do pai de Manoel, que reside em Limeira, esta senhora viveu na cidade há muitos anos, tendo sido casada com um certo Capitão Vasconcellos.

Cândido Soares de Souza o bisavô Souza ao qual Manoel se refere, pelo seu lado paterno, desencarnou em Limeira em 1939, cidade onde sempre viveu.

Frei João pelas indicações da mensagem, deve tratar-se de Frei João das Mercês que, segundo a história da fundação de Limeira, foi quem deu origem ao seu nome. Acompanhando uma caravana em 1781, Frei João fez questão de levar consigo grande quantidade de limas, pois na época era corrente que estas frutas preservavam àqueles que as chupassem das febres malígnas.

Frei João das Mercês, porém, ao chegar ao “Rancho do Morro Azul” foi acometido de violento ataque de febre que o vitimou. No delírio o religioso acusava seus auxiliares de terem envenenado a sacola de frutas. Enterraram o religioso alí perto e com ele o resto das limas. Tempos depois perto da cruz erguida, nasceu uma limeira. E o pouso passou a chamar-se “Rancho da Limeira”.

Oduvaldo Viana pelas indicações, deve tratar-se de Oduvaldo Viana Filho, autor teatral que desencarnou aos 36 anos de idade, no Rio de Janeiro, deixando inúmeras obras teatrais, entre as quais “Alegro Desbum”. Quando ainda era vivo, numa tarde na casa de Cidinha Campos no Rio, Vianinha convidou Nair Bello para interpretar um dos papéis dessa peça, que ele acabara de escrever.

Na ocasião, Nair não aceitou o convite e a peça foi lançada no Rio, com outra intérprete. Dois meses depois do desaparecimento de seu filho, quando maior era a sua depressão e o manifesto desejo de abandonar a vida artística, Nair foi procurada pelo diretor José Renato, que a convidou para interpretar o mesmo papel que Vianinha lhe destinara ainda em vida. A instâncias de seus familiares, Nair aceitou o convite e “Alegro Desbum” foi lançada em março de 1976, havendo permanecido em cartaz, só em São Paulo, durante 14 meses.

Maria Aparecida Souza Francisco é a Aparecida, irmã de Manoel, citada também em sua mensagem.

Natal tradicionalmente, a família de Manoel sempre passou as festas de Natal em Limeira, junto com os familiares de seu pai que lá residem. Efetivamente, no começo de dezembro de 1975, Manoel manifestara sua disposição em não ir àquela tradicional reunião.

Suicídio sua preocupação em afastar, para seus familiares, a possível hipótese de que poderia ter desertado da vida, justifica-se em razão de uma série de coincidências ocorridas um mês antes do acidente. Em poucos dias, no mês de novembro, Manoel abandonou a Faculdade Ideal, onde estudava, deixou o emprego onde trabalhava e desmanchou o noivado que mantinha com uma jovem do Rio de Janeiro. Depois de tudo, seus familiares somaram o seu estranho comportamento, parecendo que ele se preparava para desfazer todos os vínculos que mantinha na terra, exceto os da família.

Daniel Polcaro: